As 40 questões sobre a alma
Jacob Böehme
A alma é um olho no Abismo eterno. É uma similitude da eternidade, uma figura completa e uma imagem do primeiro princípio, e se assemelha a Deus Pai conforme sua Pessoa e conforme a Natureza eterna. Sua essência e sua substancialidade (considerada apenas em si mesma) é primeiro a roda da Natureza, com as quatro primeiras formas.
Pois a Palavra do Senhor conglomerou a alma com o fiat eterno na Vontade eterna do Pai, no centro da Natureza eterna; e a manifestou com o Espírito Santo ou a soprou como um fogo que está oculto na eternidade, na qual [eternidade] todas as formas da Natureza eterna existiram desde toda a eternidade e foram conhecidas apenas na Sabedoria, na magia divina, como uma figura ou uma imagem sem substancialidade.
Mas este ser [a alma] não era substancial, porém essencial; ela foi conhecida no princípio, no relâmpago, no qual o fogo se origina. Mas essa mesma sombra [da alma] se representou eternamente numa imagem figurativa na Vontade desejosa de Deus e existiu diante do ternário de Deus na magia, na Sabedoria de Deus, como uma semelhança da Santa Trindade, na qual [alma] Deus manifestou-se como num espelho.
A substância e imagem da alma pode ser comparada a uma bela flor que cresce da terra e também [se compara] ao fogo e à luz. Com efeito, vemos que a terra é um centrum e não a vida; mas ela é substancial e dela cresce uma bela flor que não se assemelha à terra, que não tem nem seu cheiro nem seu sabor, menos ainda sua figura e, no entanto, a terra é a mãe da flor.
A alma aparece do mesmo modo: do centrum eterno da Natureza, da essência eterna, pelo Verbo fiat, na Vontade de Deus. E ela foi contida pelo fiat, de modo que assim ela apareceu como um olho de fogo, [como] uma similitude do primeiro princípio, [como] uma forma criatural e [como] um ser. E desse olho saiu o brilho de seu fogo, como a luz sai do fogo; e nesse brilho de seu próprio fogo foi vista a imagem eterna que está na Sabedoria de Deus, e ela foi apreendida pela Vontade do Coração de Deus no segundo princípio (isto é: pelo verbo fiat do segundo princípio), no amor e na força da Santa Trindade, no qual o Espírito Santo irrompe.
Assim, a alma foi uma completa similitude e imagem da Santa Trindade. Aqui tomamos a alma como o centro da Natureza [centrum naturae] e sua vida de fogo como o primeiro princípio. No entanto, o broto da alma ou a imagem, que é uma similitude da Divindade, cresce da alma como uma flor cresce da terra; e essa imagem é apreendida pelo Espírito Santo, pois ela é sua habitação. Se a alma tira sua imaginação de si (da sua fonte de fogo) e a coloca na Luz de Deus, então ela recebe a Luz, como a Lua recebe o brilho do Sol. Assim, sua imagem reside na majestade de Deus e ela [a alma] na Luz de Deus, e sua fonte de fogo é transformada numa doçura e num amor ardente, e então ela é reconhecida como sendo a Vontade de Deus [ou o filho de Deus].
Mas, como a alma é essencial e seu próprio ser é um desejo, é evidente que ela existe em dois fiat. Um deles é sua propriedade corporal, o outro é o segundo princípio — que provém da Vontade de Deus, que reside na alma —, no qual Deus deseja ter sua imagem e sua semelhança. Assim, o desejo de Deus é como um fiat no centro da alma e ele atrai continuamente a vontade da alma para o Coração de Deus, pois o ardor [desejo ou anelo] de Deus é ter a alma. Ora, o centrum [naturae] na força do fogo também desejaria tê-la, pois a vida da alma provém do fogo.
Aqui há o combate pela imagem da alma: a alma é qualificada segundo a forma que a vence, seja o fogo ou a doçura do amor; e conforme for a qualificação da vontade da alma, a imagem que resultará da alma será análoga. E temos de saber que, se a vontade da alma muda, a imagem também muda; uma vez que, se a fonte da alma for ígnea, então ela também terá uma imagem ígnea.
Mas, se a alma volta sua imaginação para o centrum, para a forte adstringência e para o amargor, então sua bela imagem também será aprisionada na adstringência tenebrosa e [será] infestada pela cólera adstringente. E então essa cólera é uma turba, que possui a imagem e destrói a similitude de Deus. Pois em Deus há amor, Luz, doçura; mas nessa imagem há trevas, adstringência e amargor, o sua fonte essencial é o fogo proveniente das essências da cólera. Assim, enquanto essa imagem permanecer numa fonte [qualidade ou propriedade] e forma semelhantes nas Trevas, não pertencerá ao Reino de Deus.
Ademais, o fogo é uma similitude da alma, uma vez que a alma é um fogo essencial e o relâmpago de fogo é a vida dela. A alma se assemelha a um globo de fogo ou a um olho de fogo. Ora, o fogo ardendo na fonte significa o primeiro princípio e a vida; no entanto, o fogo não é a vida, mas o espírito da fonte, que resulta da angústia do fogo e sai do fogo como um ar. Esse [ar] é o verdadeiro espírito da vida do fogo, que sopra continuamente o fogo de novo e o faz arder.
Então, o fogo produz um brilho e uma Luz a partir da fonte e permanece na fonte em que brilha, mas a fonte não apreende a Luz. E isso significa o segundo princípio, no qual a Divindade habita. Pois sabemos que a força está na Luz e não no fogo. O fogo dá as essências para a Luz; e a vida ou a Luz produz a doçura e a substancialidade, isto é, a água. Agora entendemos que na Luz há uma vida doce sem tormento e, no entanto, há nela um tormento, porém insensível, que nada mais é que uma atração ou um desejo de amor.
Pois consideramos essa fonte como uma tintura, na qual emergem o vegetamento e a floração, e, no entanto, o fogo é uma causa dessa [tintura] e a doçura é uma causa da substancialidade. Pois o amor desejando a Luz a atrai para si e a retém, de modo que ela se torna uma substância, mas o desejo do fogo consome [ou destrói] a substancialidade.
Também devemos pensar a mesma coisa da alma: o que constitui propriamente a alma no centrum é um fogo essencial no olho da eternidade; e esse fogo deseja ter uma figura ou uma imagem conforme a Sabedoria de Deus. E em seu desejo, em sua imaginação, existe [ou reside] a imagem, pois o Verbo fiat a apreendeu para que ela fosse uma similitude da Sabedoria eterna de Deus, na qual [Sabedoria] Deus habita e na qual Ele pode manifestar, mediante seu Espírito, tudo o que existiu em seu conselho eterno.
Assim, se o fogo essencial introduz seu desejo na majestade de Deus, esta se inflama na imagem no fogo essencial. Se isso não ocorre, então a imagem é vazia e nua: sem Deus, e a tintura é falsa. Pois a imagem reside na tintura e tem sua origem na Luz: na tintura e não na fonte de fogo. Assim como o Coração de Deus, ou a Palavra, tem sua origem na Luz da majestade, na tintura do fogo eterno do Pai, assim também a imagem da alma.
Com efeito, a imagem habita no fogo da alma, como a luz habita no fogo, mas tem outro princípio, como a luz também é uma fonte diversa daquela do fogo.
Assim, a verdadeira imagem de Deus habita na Luz do fogo da alma, e a alma de fogo tem de extrair essa Luz na fonte do amor de Deus, na majestade, colocando nesta sua imaginação. E se a alma não age assim, mas dirige sua imaginação para si mesma, para sua forma colérica ou para fonte de fogo e não para a fonte do amor na Luz de Deus, então sua própria fonte de acerbidade, de adstringência e de amargor se eleva e a imagem de Deus torna-se uma turba e a semelhança de Deus é tragada na cólera.
Então o adstringente fiat figura para a alma, nas essências ígneas da alma, uma imagem conforme sua imaginação. O que quer que o fogo essencial da alma deseje em sua vontade, isso é representado na alma com figuras terrestres — onde quer que a vontade da alma entre, a saber: na cobiça, no orgulho, o fiat da alma produz uma imagem semelhante, até onde o terceiro princípio puder agir com o espírito das estrelas e dos elementos.
Se a vontade da alma se lança no reino deste mundo, então o reino exterior tem poder para introduzir sua imaginação no princípio interior; e se o fiat interior percebe essa imaginação no fogo da alma, então se impregna com ela e a retém.
Então, a alma tem uma imagem animal conforme o terceiro princípio e jamais poderá ser destruída, a menos que a vontade da alma se desvie da atração terrestre e se lance de novo no amor de Deus. Nesse momento, recupera a imagem de Deus. E isso só pode ocorrer nesta vida, enquanto a alma está essencialmente em seu éter, no crescimento de sua árvore; e depois desta vida isso não mais pode ocorrer.
Assim nós te damos a entender o que são a alma, o espírito [da alma], a imagem [da alma] e a turba [da alma]. A alma habita em si mesma e é um fogo essencial; e sua imagem reside nela mesma, em sua imaginação, em sua Luz, contanto que ela se prenda a Deus. Do contrário, permanece na angústia, na cólera das Trevas, e é uma larva ou uma imagem do demônio.
A turba da alma, que quebra [ou destrói] a imagem divina, é um furor essencial e é causada pela imaginação falsa ou pelo amor falso.
Por isso, tudo depende da imaginação. A imagem consiste nas coisas que o homem deixa entrar em seu desejo. É muito necessário que ele combata continuamente a razão terrestre da carne e do sangue e entregue o espírito de sua vontade à misericórdia e ao amor de Deus; que se lance sempre na Vontade de Deus; que não considere os bens e as volúpias terrestres como seu tesouro e não coloque neles seu desejo, porque isso destruiria sua nobre imagem, uma vez que isso é uma turba da imagem de Deus e introduz a propriedade terrestre na imagem. Em suma, Cristo disse: “Onde está vosso tesouro, ali está vosso coração”. É conforme isso que Deus julgará o que há de oculto na humanidade: separará o puro do impuro, dará o que houver de falso à turba do fogo para ser devorado e, o que houver de santo, o que houver entrado em Deus, Ele introduzirá em seu reino. Amém.